Sim, estamos diante daqueles momentos que podem ser revolucionários na medicina. Entretanto, antes de seguirmos adiante, alguns conceitos precisam ser esclarecidos e algumas informações precisam ser relembradas.
No tratamento do câncer, tornou-se fundamental distinguir tumores “quentes” e tumores “frios”, principalmente no contexto da imunoterapia — uma terapia relativamente recente e que usa elementos do nosso sistema imunológico para combater essa doença. Os tumores “quentes” são melhor identificados pela nossa defesa e, assim, respondem melhor a essa terapia. Já os “frios” passam praticamente despercebidos pela nossa imunidade, como se voassem abaixo do radar. Assim, acabam refratários às nossas melhores armas. Um enorme desafio para a oncologia atual.
Mas eis que, por um contingente histórico, uma ferramenta que foi originalmente desenvolvida para ser aplicada no combate ao câncer acaba sendo aplicada massivamente em níveis globais por outra razão: a tecnologia de mRNA, no caso, presente na vacina contra a covid-19. E agora, os resultados dessa aplicação nos pacientes com alguns tipos de câncer vêm surpreendendo e enchendo a todos de esperança.
O que diz o novo estudo?
Estudo recente publicado na revista Nature analisando 880 pacientes com carcinoma pulmonar de não-pequenas células e outros com melanomas, ambos em estágio avançado, demonstrou que estes tiveram o dobro de sobrevida em três anos quando haviam recebido a vacina de mRNA contra a covid no período adjacente ao tratamento imunoterápico quando comparados àqueles que não tinham recebido a vacina. No caso dos pacientes com melanoma, o risco de morte caiu quase 60%. Naqueles com câncer avançado de pulmão, a sobrevida média aumentou de 20,6 para 37,3 meses. Mas o que explicaria isso?
O segredo, segundo estudos de laboratório, não estaria no material genético viral contido na vacina, mas sim na minúscula cápsula de gordura criada para proteger essa mensagem até que ela chegue às células. Esta nanopartícula, como chamamos, seria capaz de desencadear a produção de substâncias chamadas citocinas que, por sua vez, conseguiriam atrair algumas células de defesa para o tumor. Este, em resposta, produziria outras substâncias para se proteger dessa aproximação, como um escudo. Entretanto, esta estratégia é uma má ideia para o tumor: ao tentar se proteger, ele acaba “aquecendo” e atraindo a atenção do nosso sistema imunológico, que passa a conseguir reconhecê-lo e a atacá-lo com efetividade, além de torná-lo mais sensível aos tratamentos. Mas, atenção: não estamos falando de uma vacina contra o câncer, como a de HPV, mas de uma ferramenta auxiliar no tratamento de tumores difíceis e em estágios para os quais hoje temos poucas opções.
Uma nova fronteira entre vacinas e câncer
Embora os estudos estejam em fase inicial e sejam necessários outros para entendermos como isto poderá ser aplicado na prática, esta descoberta redefine a fronteira entre a vacinologia e a oncologia. No futuro, talvez existam vacinas de mRNA criadas especialmente para ajudar o corpo a reconhecer tumores específicos, de forma personalizada, ou mesmo vacinas “universais”, que deixariam o sistema imune sempre preparado para combatê-los. A ciência não para nunca de evoluir e este exemplo mostra que estamos no caminho certo: vacinas podem salvar vidas de formas muito além daquelas que já conhecemos.
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